A função dos velhos é recordar. Planejar seria tolice, eis que nos falta tempo, matéria prima dessa atividade. Resta-nos deixar que a memória passe seus filmes, enquanto ainda podemos vê-los. Foi assim, então, que, entre uma cachimbada e outra, vi a exibição das cenas abaixo relatadas, todas da minha já longínqua juventude. Era impossível ingressar no Partido Comunista Brasileiro, aqui no Amazonas, sem conhecer Geraldo Campelo. Era ele o secretário geral da organização, cargo equivalente mais ou menos ao de presidente em sociedades de outro tipo. Em sua casa, no bairro da Cachoeirinha, recebia os candidatos à admissão, com eles conversando e, ao mesmo tempo, fazendo uma avalição do comportamento social e moral do pretendente. Não escapei desse crivo. Aos dezoito anos, lá estava eu frente a frente com aquela verdadeira lenda viva dos movimentos progressistas em nosso Estado. Fui levado por José Paiva Filho e Álvaro Gaia Nina, dois grandes camaradas que, infelizmente, já foram arrancados do nosso convívio. Consegui ser aprovado e disso não me arrependo até hoje, pois ali aprendi a fortalecer meu compromisso com as mais altas dimensões da fraternidade e da solidariedade humanas.
Geraldo zelava pela formação intelectual dos quadros mais jovens do Partidão. Recomendava leituras e traçava orientação sobre questões teóricas. Um episódio, ao mesmo tempo jocoso e lamentável, ocorreu certa vez. O rapaz tinha há pouco tempo ingressado na Juventude Comunista. Nosso Geraldo lhe entregou o livro de Lênin, intitulado “A Doença Infantil do Esquerdismo no Comunismo”, recomendando enfaticamente a leitura. Trata-se de uma obra em que o grande revolucionário russo critica com veemência a tendência de certos setores do partido de estreitarem a visão de mundo, vendo a árvore sem distinguir a floresta. Pois muito que bem. O tempo passou e o jovem companheiro voltou à presença do velho dirigente, que lhe perguntou sobre o livro. A resposta foi mais ou menos esta: “Ah, seu Geraldo, eu fiquei muito triste com todas aquelas criancinhas morrendo da tal doença”. Dá para imaginar o espanto, a frustração e a raiva de Geraldo. Com a face vermelha, deu um ralho no rapaz, do qual a essencial lição é a de que “ser comunista não é brincadeira”.
A eterna companheira de Geraldo era Maria Pucu. Companheira e, como ele, dirigente do Partido. Em plena ditadura, era extremamente difícil e arriscado efetivar as reuniões dos diversos organismos. Para o Comitê Estadual, então, isso era muito complicado, uma vez que maiores tinham que ser as preocupações com segurança. Os estatutos recomendavam que, tanto quanto possível, os comitês estaduais se deveriam reunir com a presença de um assistente do Comitê Central, com sede no Rio de Janeiro. Na repressão, isso era quase impossível. Mas tínhamos conseguido: num modesto barco-motor, ancorado sob uma goiabeira num paraná qualquer, estava reunido o Comitê Estadual e presente se achava o representante do Comitê Central. À luz de lamparinas, foi-nos dito (já eu fazia parte da direção) que a posição oficial do Partido, em relação ao combate à ditadura, era a de não violência. Maria usou seu direito à voz e fez vigorosa defesa da via contrária, sustentando que não percebia outro caminho para pôr fim aos desmandos que não fosse a luta armada. Era impressionante ver aquela mulher franzina, quase miúda, defender com tanta coerência e eloquência um ponto de vista, mesmo sabendo que o centralismo democrático o tornava inviável.
É impossível prosseguir nessas reminiscências sem que venha à baila o nome do doutor Gualter Aguiar. Com sua postura de verdadeiro cavalheiro, Gualter era uma inspiração para os jovens comunistas: educado, culto e de uma cortesia a toda prova, uma conversa com ele equivalia a mil aulas de doutrinação. Conto um episódio que com ele se passou. Não tem nada a ver com o Partido, mas demonstra a fineza de sua ironia.
Gualter era gerente de uma agência do Banco da Amazônia, no interior do Estado. Na mesma cidade, atuava um promotor de justiça que não era muito bem provido de bagagens com o timbre da ciência jurídica. Bem por isso, recorria sempre aos conhecimentos de Gualter, já que este era também bacharel em direito e dominava, como poucos, os mistérios da língua portuguesa. Gualter fazia denúncias, promoções, pareceres e tudo o mais que exigisse o mister do claudicante membro do parquê. Soube este que Gualter estava trabalhando no sentido conseguir sua transferência para Manaus. Entrou em pânico. Viajou para a capital o mais rápido que pôde e, aqui, pôs-se a trabalhar para impedir que a transferência se efetivasse.
Gualter não foi transferido e soube do comportamento do promotor. Não deu sinal. Continuou tudo como dantes no quartel de Abrantes: fazia denúncias e quejandos. Até que chegou o fim do ano e o promotor tinha que enviar o relatório anual para a Procuradoria Geral, em Manaus. Os serviços de Gualter foram novamente solicitados e ele não se recusou. Preparou um relatório impecável. No oficio que escreveu, encaminhando o tal documento, o final estava assim redigido: “Sem outro assunto para o momento, acocoro-me perante Vossa Excelência”. O promotor assinou e enviou. Imagine as consequências.
Grande doutor Gualter Aguiar. Muita saudade de seus ensinamentos.
Felix Valois