O senso comum tem coisas boas, mas tem coisas sem nenhum senso.
Escrevo isto pensando no debate que envolve a questão racial. Debate que travo no dia a dia, numa perspectiva histórica e sociológica, mas que esbarra numa contraposição grosseira e de latente racismo.
Quando o tema é cota racial, o incauto, ou incauta, diz tratar-se de autodiscriminação e que o espaço conquistado através dessa política não tem atribuição de mérito, blá, blá, blá.
Ora, querer fazer o debate de mérito numa sociedade de classes e num país que tem uma das maiores desigualdades sociais do mundo é querer tapar o sol com a peneira. Quando a questão inclui raças, aí é desconhecer ou debochar da história.
Como posso colocar num mesmo nível de disputa a Casa Grande e a Senzala? Como posso ver possibilidades iguais no filho alfabetizado e frequentador de boas escolas com o filho negro impedido de ser alfabetizado e de frequentar uma escola? Como posso ver possibilidades de mérito em condições sociais tão desiguais e excludente?
Concorrência baseada em mérito entre ricos e pobres é um deboche acintoso; entre negros e brancos, é ignorância ou total desconhecimento da nossa história e da nossa realidade.
Os morros e favelas não podem ser invisibilizados, como se neles vidas e história não existissem. É lá que se respira a exclusão social. Ninguém é vítima do preconceito e do abandono por escolha, mas por condição histórica, construída no antagonismo de classe e no mais tacanho discurso da meritocracia.
Temos visto o escancaramento do racismo no Brasil na mesma proporção que do aumento da violência social praticada pela consolidação da desigualdade em seus mais terríveis níveis.
Há um recrudescimento da violência física, com crimes institucionalizados a partir do governo genocida que se instalou no início de 2019, do qual ainda sentimos seus reflexos. Já não se busca sequer esconder a violência racista com o pseudo argumento da democracia racial. Talvez só o senso comum insista neste anacronismo.
A meritocracia numa sociedade edificada na profunda desigualdade social é um discurso legitimador dessa desigualdade, mesmo quando carrega em si a alienação. Não existe concorrência leal na acumulação desenfreada, baseada na exploração econômica e social. Aos oprimidos cabe a luta e aos opressores o sádico desejo do sofrimento e da morte do outro.
É assim numa sociedade de classes cuja história é marcada pelo racismo, pelo preconceito, pelo machismo de uma elite escrota, mesquinha culturalmente e socialmente violenta.
Lúcio Carril
Sociólogo