O relógio despertou às seis e cinco da manhã. Não era comum ele acordar essa hora, mas aqueles últimos pingos de chuva no telhado de zinco lhe parecia as últimas notas de uma sinfonia da natureza.
Levantou e se debruçou na janela do quarto. Viu o orvalho da noite amazônica e os pássaros fazendo festa, com voos de regozijo.
Começou a lembrar do sonho que teve. Na verdade, um pesadelo que não poderia ser revivido nem enquanto dormia. Via o quadro Duas Mulatas, de Di Cavalcanti, ser furado por um vândalo. Sentia no seu peito as estocadas. Seu coração se esfarelava junto com o vitral Araguaia, de Marianne Peretti e sua alma sofreu quando outro monstro lambuzou a escultura “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti.
Foi uma noite terrível, mas naquele amanhecer já era possível respirar um ar de paz e esperança.
Ela acordou ainda em êxtase com aquela noite. Lembrou de uma estrofe da música que cantou ao seu amante.
“Se nós nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir”
Sim, não conseguia seguir, levantar daquela noite de muito amor. Mas o relógio já registrava seis e vinte da manhã. Era hora de despertar e se preparar para o show de logo mais.
Os jornais estampavam nessa manhã o genocídio do povo Yanomami. Cenas horríveis chocavam todos seres humanos. Crianças, adultos e idosos morrendo de fome e de doenças evitáveis.
Naquele dia, os dois artistas tinham um encontro com sua história e com sua humanidade. Os dois estariam juntos num show e ali pediriam apoio e solidariedade aos seus irmãos Yanomami. De mãos dadas, chorariam e gritariam: nosso povo está morrendo. É genocídio. Aquele monstro inominável é o responsável.
Assim foi a apresentação. O público chorou junto e aplaudiu os artistas. Aquilo já fazia parte da vida deles. Carregavam no seu peito o amor e a sensibilidade.
Lúcio Carril
Sociólogo.