ESPECIAL – Ele não pode aparecer, mas nos anos 2000, quando atuava na hoje extinta Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa, na Avenida 7 de Setembro, centro de Manaus, testemunhou o início do que se tornaria hoje uma espécie de ‘estado paralelo’ ou a criação da primeira facção criminosa ou do crime organizado no Amazonas.
Essa matéria especial conta a trajetória com detalhes, do nascimento do crime organizado no estado e mostra alguns personagens que teriam sido alertados por agentes penitenciários, mas que não deram a devida atenção, mesmo após uma CPI presidida pelos então deputados estaduais Wallace Souza e Eron Bezerra (PC do B).
O Estado não deu a devida atenção às graves denúncias e o que se vê é o descontole da violência e o crescimento assustador das facções criminosas que este ano, 2025, anunciaram uma espécie de ‘união’ entre as duas mais cruéis do Brasil (CV e PCC). Veja a entrevista na íntegra:
Portal: QUANDO E COMO VOCÊ TESTEMUNHOU O INÍCIO OU SURGIMENTO DAS FACÇÕES CRIMINOSAS NO AMAZONAS?
AGENTE: Foi nos anos 2000 que o crime organizado no Amazonas começou a se organizar. Isso ocorreu na antiga Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa-CPDRVP, situada na Avenida Sete de Setembro, Centro, onde trabalhei por vários anos como agente penitenciário. Foi lá que foi criado a primeira facção, denominada PRIMEIRO COMANDO DO AMAZONAS (PCA), cuja inscrição estavam pintadas nas paredes das celas do Raio B daquela Unidade Prisional (como mostram fotos registradas pelo autor desta entrevista, durante uma revista de rotina, em poder deste).
Portal: COMO FOI E O QUE OCORREU NESTE DIA?
AGENTE: No período de 2000 a 2002 os internos, hoje Pessoas Privadas de Liberdade, iniciaram a elaboração do Estatuto do PCA o qual foi feito na frente dos antigos Agentes Penitenciários porque existiam apenas três (03) destes profissionais por plantão para custodiar mais de 1.000 presos, todos estavam fora das celas, soltos com os portões internos e as celas abertas, armados com armas brancas, armas de fogo e estoques, as quais faziam questão de mostrar para intimidar os Agentes Penitenciários. Era impossível fechar as celas ou os Pavilhões, se isso ocorresse poderíamos ser mortos. Portanto, era impossível fazer Segurança Penitenciária e a custódia dos presos com esse número ínfimo de profissionais. Nossa segurança não estava garantida para cumprir a determinação estatal.
Portal: VOCÊ QUER DIZER QUE VOCES AGENTES CORRERAM RISCO DE SEREM MORTOS QUANDO OCORREU ESSA REUNIÃO DENTRO DO PRESÍDIO?
AGENTE: Foram dias difíceis, lembro como se fosse hoje, o medo tomava conta do nosso ser, trabalhávamos em um ambiente de elevado grau de perigo, sendo a segunda profissão mais arriscada do mundo e de grau máximo de stress. Tomava e tomo remédio controlado até hoje para suportar o stress e as lembranças que carregarei para o resto da minha vida. Quando terminávamos o plantão e passávamos para a outra Equipe e íamos para nossos lares era um alívio saber que estávamos vivos, porém a preocupação continuava porque desejávamos que os nossos sucessores conseguissem suportar o serviço.
Portal: Como era trabalhar naquela época na Cadeia Pública Vidal Pessoa?
AGENTE: Nossas vidas valiam pouco para o Estado porque para o governo o que interessava era a cadeia sem alteração, não importando como faríamos isso com apenas três Agentes Penitenciários. Vimos muitas mortes e atrocidades ocorrerem nas celas, nos isolamentos, nos corredores e no denominado TEMIDO CÉU AZUL, a cela mais cruel que já vi numa Unidade Prisional, além da CINTURA FINA, SUMIDOURO, FAVELA, e outras que foram desativadas e outras que foram tapadas ou colocado cimento e embuçadas para encobrir o passado tenebroso daquele inferno no centro de Manaus, por conta da intervenção dos Direitos Humanos.
Portal: Isso que você está falando é muito sério, quer dizer que haviam execuções e lá mesmo os corpos eram enterrado e desapareciam?
AGENTE: Digo do fundo do meu coração que fiquei muito feliz quando criaram a Comissão do Direitos Humano, porque aliviou o sofrimento daquelas pessoas presas e deu, também, nova direção ao nosso trabalho dentro daquela Unidade. Até assombrações chegamos a presenciar, fatos sobrenaturais sempre foram comuns naquele local, mas, que serão contados em outro momento.
Portal: Quando e a quem foi feita a denúncia do surgimento de facções no Amazonas:
AGENTE: Diante do que estava ocorrendo porque a situação estava incontrolada naquela Unidade, foi que eu e mais dois Agentes Penitenciários decidiram fazer uma denúncia ao Secretário da SEJUS, a época, lembro que por três vezes denunciamos o surgimento da facção, mas nenhuma providência foi tomada. Foi então que decidiram ir ao Programa de Televisão CANAL LIVRE, na época, apresentado pelo Deputado Estadual Wallace Souza, onde aparecemos encapuzados dentro do studio falamos tudo, ao vivo, o que estava ocorrendo dentro do Sistema Penitenciário do Amazonas para toda a Sociedade Amazonense e todas as Autoridades de Segurança Pública saberem e tomarem uma providência para dar um basta naquilo.
Portal: E APÓS ESSAS DENÚNCIAS, O QUE OCORREU? ALGUM TIPO DE PROVIDÊNCIA FOI TOMADA?
AGENTE: Nenhuma. Ainda foram feitas mais de uma vez denúncias no programa do Deputado Estadual Wallace Souza que protocolou na Assembleia Legislativa do Amazonas o pedido de criação de uma CPI DO SISTEMA PENITENCIÁRIO AMAZONENSE para apurar as denúncias. Logo em seguida foi criada a CPI DO SISTEMA PENITENCIÁRIO AMAZONENSE. Foram ouvidos pela CPI, presidida pelo Deputado Wallace Souza, contaram tudo, foram também orientados a manter todos os cuidados com suas vidas porque a partir daquele momento passaram a ser testemunhas vivas e até queriam lhes colocar no Programa de Proteção à testemunha e mandar para outro Estado, mas, os agentes não aceitaram.
Portal: A partir dessas denúncias e da abertura das CPI, o que ocorreu em seguida?
AGENTE: Após isso, no ano de 2003, o deputado estadual Wallace Souza e seu irmão, então deputado federal Carlos Souza, de tanta repercussão que o caso deu, trouxeram de Brasília uma Comissão formada por duas Deputadas Federais e mais um Deputado Federal membros da Comissão de Combate ao Crime Organizado para que os denunciantes fossem ouvidos. Para essa oitiva, as testemunhas foram escoltados encapuzados para um local que só descobriram quando chegaram. As roupas deles eram roupas novas que só seriam usadas naquele dia e nunca mais, isso se devia porque os presos já tinham dado ordens de dentro do presídio para os eliminarem e conheciam todas as suas vestimentas e demais utensílios de uso diário pelo fato de lidarem direto com eles. Ou seja, queriam eliminá-los antes que prestassem depoimento. No local onde foram levados estavam presentes o Secretário da SEJUS, todas as Autoridades da Segurança Pública do Amazonas, membros do Ministério Público e a Presidente do Tribunal de Justiça do Amazonas, onde tiraram os capuzes e falaram, sem medo, denunciaram tudo o que estava ocorrendo na Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa-CPDRVP.
Portal: A partir dessa denúncia, quais foram as denúncias mais graves e que chamou mais atenção da CPI?
AGENTE: Os agentes falaram quem eram os líderes do PCA (a recém criada facção), falaram sobre a criação do Estatuto dos criminosos, que esse novo ‘Comando’ era para enfrentar as forças policiais e desestabilizar a Segurança Pública no Estado, que por conta de estarem perdendo muitas drogas em apreensões iriam enfrentar a Polícia com armas de grosso calibre e até colocar explosivos em certas cargas de drogas com a finalidade de matar policiais quando fossem abrir certos recipientes. Também falaram que dentro daquela Unidade Prisional os presos tinham muitas armas de fogo e que faziam questão de mostrar para os Agentes Penitenciários como forma de intimidá-los, que ficavam soltos dia e noite e que vendiam grande quantidade de drogas para os outros presos, fiado, na frente deles sem nenhum respeito. Eles vendiam as drogas ‘fiado’ para ser pago nos finais de semana pelos parentes dos presos durante as visitas.
Portal: O que mais foi revelado durante essa oitiva dos agentes que denunciaram os crimes e a criação da facção e quais providências foram tomadas?
AGENTE: Os detentos envolvidos na facção refinavam drogas dentro da unidade as quais eram revendiam para os traficantes das ruas. A solução apontada por eles seria Concurso Público para a contratação de mais Agentes Penitenciários e a intervenção naquela Unidade Prisional para acabar com a afronta ao Estado e também acabar com a criação do PRIMEIRO COMANDO DO AMAZONAS-PCA. O Estado tinha que garantir a segurança destes para que o serviço Penitenciário fosse bem prestado, posto ser Função Precípua do Estado a prestação de um bom serviço para o bem comum do povo. A solução naquele momento, acertado entre todas as autoridades, foi cedê-los para a Polícia Civil do Estado do Amazonas para trabalharem em algumas Delegacias como forma de preservar suas vidas, o que não foi o que esperavam porque essa decisão diminuiu ainda mais a mão de obra naquela Unidade Prisional, pois o correto seria o Estado entrar com mão de ferro e mostrar quem mandava e manda nos Presídios. Fica a certeza que se tivessem feito o correto o Amazonas não estaria tão violento como está agora, infestado de facções.
Portal: O reflexo dessa falta de atitude das autoridades resultou no caos na segurança pública e na ampliação das facções, crimes e narcotráfico em todo o Amazonas?
AGENTE: Empurraram o problema para debaixo do tapete, deu no que deu, não quiseram ouvi-los. Em 2004 a CPI DO SISTEMA PENITENCIÁRIO AMAZONENSE passou a ser presidida pelo então deputado estadual Eron Bezerra (PC do B), que não chegou a nenhuma solução. No ano de 2004 o PCA se transformou em FDN-Família do Norte, famigerada facção que foi responsável por inúmeras mortes violentas nas ruas de Manaus e dentro dos Presídios e Unidades Prisionais em todo o Amazonas, sendo notório e de conhecimento da sociedade Amazonense e Brasileira. As principais foram a fuga em massa do IPAT-Instituto Penal Antonio Trindade, a matanças em várias unidades prisionais, e a mais terrível, a carnificina ocorrida em 01, de janeiro de 2017, ocorrida NO COMPLEXO PENITENCIÁRIO ANÍSIO JOBIM COMPAJ/REGIME FECHADO, onde foram mortos esquartejados, queimados, 56 presos.
Portal: Você quer dizer que se as providências fossem tomadas naquele ano, em 2000, a violência imposta hoje pelas facções não teria se alastrado pelo Amazonas?
AGENTE: Certeza. Aquela carnificina ganhou repercussão nacional e internacional. Graças à Deus que alertou e fez aquelas denúncias estão vivas e puderam ver as maiores atrocidades que o ser humano preso é capaz de cometer, mas isso não é restrito somente à presos os que estão em liberdade também cometem. Naquela época eles viram presos sendo enrolados em colchões e sendo queimados vivos; presos sendo mortos por uma multidão de outros detentos, sendo espancados, torturados, esquartejados, tendo os olhos arrancados, braços e pernas cortados e sendo jogados de mão em mão para brincarem, viram cabeças sendo cortadas e feitas de ‘bolas’ pelos presos que pareciam animais e com os olhos avermelhados, na verdade ‘endemoniados’. Andaram em um corredor de uma unidade prisional que parecia um Rio de Sangue, achavam que dava uns 8cm de sangue que escorria e que só podiam entrar de botas, viram cabeças de presos conhecidos sendo jogada para eles de cima do telhado de uma unidade. Essas imagens nunca esqueci e até hoje vem na lembrança e em sonhos, me perseguem até os dias atuais.
Portal: Vocês viveram dias terríveis, viram coisas terríveis e como é viver hoje, com suas famílias? O que vocês esperam do futuro?
AGENGTE: Passar o que passamos, ver o que vimos, sentir o que sentimos, trabalhar nesse ambiente onde o perigo é iminente, a carga de stress é em último grau e onde a vida não tem nenhum valor, é para poucos. Hoje, sentimos os efeitos dessa exposição, temos várias doenças ocupacionais. Mas, graças à Deus ainda estamos vivos, muitos se foram (morreram), lutando para prestar um bom serviço penitenciário contribuindo com a Segurança Pública visando gerar sensação de segurança à Sociedade Amazonense.
Fotos: Instituto Durango Duarte/ SEAP/ redação/IPatrimônio