As revistinhas da época sempre me colocaram em meio ao natal europeu.
Minha mente infantil vagava por vastos campos de neve, entremeados de imponentes
pinheiros, nos quais havia bichos que eu nunca tinha visto e que saltitavam na pueril
imaginação, como que convidando para brincadeiras que eu nunca poderia realizar.
Como é que Papai Noel podia vestir roupas tão grossas se eu suportava aquilo tudo com
um simples calção e chinelo de couro? O menino da beira do igarapé de São Raimundo
não podia saber o que era o frio, mas o sentia assim mesmo porque o natal a todos nos
envolvia com uma aura de misticismo e encantamento.
Na pequena igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a Missa do
Galo tinha para nós conotações de apoteose. O coro, a cargo das irmãs Feitosa, entoava
canções que nos embalavam com singela beleza e magnitude. O “Adeste Fidelis”
ecoava na madrugada, transportando os fiéis aos paroxismos da emoção, naquilo que os
jornais sempre insistiram em chamar “a festa maior da cristandade”.
Confesso que tenho saudades das minhas inocência e ingenuidade. Nunca
deixei de escrever a famosa cartinha, na esperança de que os meus desejos pudessem
superar uma dificuldade definitiva: meus pais não tinham recursos materiais que fossem
capazes de atender à extensão da imaginação infantil. A bicicleta se transmudava em um
caminhão de madeira, mas com ele eu brincava na maior alegria do mundo. Porque era
natal. Porque, então, era indispensável expandir o sentimento de ternura e o pequeno
objeto era tratado com o mais dedicado dos carinhos.
Sonhava com as renas voadoras, cortando os céus do universo (que, para
mim, não era tão grande assim) e imaginava a felicidade que seria poder sentar naquele
trenó mágico, escolhendo o brinquedo que me apetecesse. Ouvia “Noite Feliz” e tinha
certeza de que o pequeno Jesus conseguiria, de fato, dormir em paz, pobrezinho e na
lapa, adorado por anjos e querubins.
Já não sonho nem me entrego aos inofensivos devaneios. Afinal de
contas, é o meu octogésimo primeiro natal e a crosta da realidade me cobriu
irreversivelmente, impondo-me que, na velhice, viva eu da alegria e da efusividade dos
netos. Até porque seria impossível manter aquilo que foi criado para ser apagado pelo
tempo. E ele cumpriu seu papel com maestria e perícia admiráveis. Logrou mostrar ao
ancião que, mesmo sendo proibido perder a ternura, já não se lhe permite devanear.
Tudo ficou para trás e as lembranças são apenas marcas sutis do menino religioso e
crente, a ter como certo que a divindade haveria de lhe prover a vida.
Não proveu. Nem poderia fazê-lo. Melhor deixar que a própria vida se
encarregue da tarefa de compatibilizar crescimento e compreensão. Da mesma forma
como há de dar um jeito para estabelecer a convivência entre velhice e conformação.
Por isso, mesmo não sendo um velho amargo (longe de mim), tenho que expressar o que
me poderia proporcionar um natal verdadeiramente feliz:
Todas as crianças do mundo terão alimentação, escola e lazer e serão
educadas na firme crença de que os seres humanos nascem iguais e permanecem iguais.
Aos homens e às mulheres de todo o mundo serão assegurados trabalho
digno e remuneração compatível, capazes de lhes proporcionar uma vida segura e de
acordo com suas aptidões e capacidades.
Todas as religiões do mundo, sendo certo o seu caráter ilusório, se
respeitarão entre si e aos adeptos de cada uma será vedada a prática de proselitismo e,
com mais razão, a de buscar a hegemonia.
A soberania de cada nação será rigorosamente respeitada por todos,
proibido o imperialismo em todas suas formas e matizes.
O mundo viverá em paz e as guerras não serão nada além de motivo de
vergonha para a humanidade.
Não tenho a ilusão de que verei isso. Mas, com ternura e sem amargor, é
meu dever de velho pedir aos jovens que tentem conseguir o que para mim já é
impossível.
Em assim sendo, feliz natal para todos.